terça-feira, 28 de maio de 2013

Expansão de texto - 2

De preto dos pés à cabeça, Narcisa afirmava que a culpada da morte do marido não tinha sido nada a gripe, onde é que já se vira uma gripe matar uma pessoa, ainda se fosse a pneumónica ou a espanhola ou a asiática, agora uma gripezita de cacaracá, que nem febre dera. Aquilo, dizia Narcisa, tinha sido do desgosto, da humilhação, do escândalo.
- Coitadinho, nunca mais foi o mesmo.
Mademoiselle Nadine Fabre não estava a perceber nada, e esperou pela explicação, por algum desabafo, que lá acabou por vir, com muitas fungadelas e muitos “coitadinhos” pelo meio.


… - Pois, lá morreu o coitadinho! Terá sido do desgosto do seu Sporting não conseguir ganhar um jogo esta época? – perguntava a Mademoiselle.
- Que não! – replicou Narcisa. Tinha passado a noite ao relento para poder votar nas eleições. O tempo estava chuvoso e só levou um casaquinho.
- Coitadinho!
E continuou a viúva:
- Até me disse que só tinha comido uma bifana e um couratozito e nem tinha bebido uma mini, porque estava muito frio. Quando chegou a casa vinha a tiritar de constipação, a pingar do nariz e os olhos chorosos. Nunca mais recuperou. Mas não percebi se foi da derrota do Sporting se foi da derrota do seu candidato.
- Coitadinho!
- Paz à sua alma!
- E era tão boa pessoa! Ultimamente, já só me espancava duas vezes por semana, se as derrotas não se acumulassem…
E continuava Narcisa:
- Os filhos raramente o viam, mas isso era apenas porque não o procuravam na tasca cá do bairro. Coitadinho!
Era o seu refúgio. Onde afogava (no verdadeiro sentido da palavra) as suas tristezas, a sua vida de sofrimento, o seu mísero ordenado – que poupava, quase fanaticamente – para restabelecer-se diariamente do seu árduo e cansativo trabalho de inspector de obras da nossa Junta de Freguesia, na qual acumulava o cargo de vereador do urbanismo – no entanto, sem qualquer remuneração devido à falência financeira da autarquia, já que o tesoureiro fugiu com todas as economias para o Brasil e instalou-se em Copacabana.
Coitadinho!
E eram tão amigos! Os dois contribuíam, em grande parte, para o desenvolvimento do comércio local – assim se explica a plantação de dez hectares de tremoço e a instalação, por parte da Sociedade Central de Cervejas, de uma nova fábrica produtora de levedura de cerveja nas margens do nosso frondoso rio que passou a disponibilizar a mais pura água para o mais adorável dos sabores.
Coitadinho! Pouco gozou dos meses seguintes à inauguração. Lá ficaram litros e litros por beber!
Só espero que lá onde ele esteja não passe sede! Coitadinho! – disse Narcisa, num choro sufocado de agonia. 
                                      Severiano Pinhão (Professor de Português do 9º 3)

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